A poética de Todo-Mundo e
as maravilhas das fronteiras na mundialidade
Viviane de Santana Paulo
Existem o que podemos chamar de poesia-política e ensaio-político, entretanto, ensaio político-poético é algo raro e creio que Glissant é o maior representante deste estilo literário. Com efeito, o espaço poético permite, através das suas evocações plurais, reunir imaginações e tecer ligações entre culturas. Nascido na Martinica, em 1928, filho de uma dona de casa e de um administrador das plantações canavieiras, Édouard Glissant é poeta, filósofo, ensaísta e romancista. Formou-se na França, onde estudou história, literatura, etnologia e filosofia, e logo se introduziu no movimento artístico-literário que se ocupava com as tendências anticolonialistas. Foi precursor de uma visão completamente nova da cultura caribenha, que consistia em se desvincular da Europa, tornando-se independente dos padrões estipulados pelos colonizadores e/ou imperialistas. Glissant conviveu com figuras como Frantz Fanon e Stuart Hall, entre outros. Ganhou o prêmio Renaudot com a obra La Lézarde, em 1958. De volta ao seu país, em 1965, funda o Instituto de Estudos Martinicanos. Foi chefe de redação da revista da UNESCO, professor na Universidade de Nova York, e vivia entre Paris e Nova York. Morreu em Paris, em 2011.
As teorias e as denominações de Glissant tornaram-se partes integrantes dos estudos sobre a filosofia negra, quer dizer, sobre a filosofia em geral. Termos como Crioulização, Todo-Mundo (Tout-Monde) são referências nestas pesquisas, além das denominações Imprevisibilidade (no que se refere à interação das diferentes culturas), Opacidade (que designa o direito de não ser compreendido de forma plena, de permanecer parcialmente inacessível ao outro), e rizomas identitários, ou seja, a multiplicidade das raízes identitárias. Glissant é fundador de uma filosofia de inclusão e diversidade cultural, por uma visão poética do mundo e uma nova perspectiva de abordagem em relação à história da escravidão, a partir da narração do escravizado, considerando as particularidades diversas que inclui a autenticidade de cada cultura.
Édouard Glissant estreou em 1956 com a obra Sol da consciência: poética, composta de textos curtos em verso e prosa, que marcaria o seu estilo, e onde encontramos os primeiros sinais de uma busca poética e identitária, tendo como ponto de partida a paisagem específica do arquipélago, e as ponderações para o que mais tarde viria a desembocar na sua filosofia da Poética da Relação (1990), obra mais densa e ensaística, na qual ele reforça e redefine as teorias da Crioulização e do Todo-Mundo, desenvolvendo os conceitos da Imprevisibilidade e da Opacidade no âmbito cultural. A filosofia glissantina busca nivelar todas as culturas, renunciando a hierarquia entre elas, gerando a ruptura com o discurso europeu, mas também com o discurso anticolonialista estático que não permite a imbricação das diferentes culturas.
À princípio, a crioulização foi um movimento literário que retratava a vida crioula (francesa) a partir de uma perspectiva crioula (francesa) no idioma crioulo (francês). Hoje, não
é apenas um fenômeno linguístico, mas o termo é conhecido e usado para designar o encontro entre as culturas sem o enfraquecimento das culturas influenciadas, mas no qual cada uma mantém a sua autenticidade. Envolve o processo no qual elas interagem umas com as outras sem distorções. "A crioulização não é uma mistura arbitrária (uniforme) em que cada indivíduo se perde, mas uma série de soluções surpreendentes cuja máxima fluida poderia ser: 'Eu mudo em troca com o outro sem perder ou falsificar a mim mesmo'."
No ensaio Introdução à Poética da Diversidade (2005), Glissant inicia suas ponderações em torno do momento em que os conquistadores europeus exterminam a população indígena na ilha de Martinica, estabelecendo um sistema de escravização para o trabalho forçado nas plantações, trazendo mulheres e homens da África, que "careciam de tudo quando chegaram, que foram privados de tudo, até mesmo de sua língua. A caverna do navio negreiro foi o lugar onde as línguas africanas desapareceram, porque no navio negreiro, assim como nas plantações, as pessoas que falavam a mesma língua eram separadas umas das outras. Assim, as últimas coisas da vida cotidiana foram tiradas das pessoas, principalmente o idioma. Como esse migrante-escravizado se sai?" Ele cria uma nova linguagem a partir dos vestígios das diversas línguas faladas pelos escravos, com os quais convivia, e da língua do opressor. Assim surgiu a língua crioula. Existem várias línguas crioulas, dependendo da região e dos diferentes idiomas dos escravos e dos opressores. São línguas independentes e com características próprias. “As línguas crioulas provêm do choque, da consumpção, da consumação recíproca de elementos linguísticos, de início absolutamente heterogêneos uns aos outros, com uma resultante imprevisível. (...). É algo novo, de que tomamos consciência, mas algo que não podemos dizer tratar-se de uma operação original, porque quando estudamos as origens de toda e qualquer língua, inclusive a francesa, percebemos que quase toda língua nas suas origens é uma língua crioula.”
Na filosofia glissantina, não existe nenhuma língua ou cultura isolada. Todas as culturas e todos os idiomas desenvolvem-se através das diversas influências umas das outras. E podem alcançar o que Glissant denomina de Todo-Mundo (Tout-Monde), lugar e espaço abstrato onde culturas diferentes evoluem concomitante aos encontros entre elas, respeitando a diversidade, onde é possível desenvolver elementos que se transformam em algo novo, algo que pode ser imprevisível ou algo que apresenta aspectos de Opacidade, ou seja, aspectos ocultos a outras culturas.
Importante ressaltar que para Glissant as apropriações e influências culturais não significam a mistura. Na mistura, as culturas se dissolvem umas nas outras. Na crioulização não há miscigenação, mas o encontro, a imbricação, a apropriação de elementos entre elas, a aproximação e o distanciamento, e de novo a aproximação, - conforme a época e as circunstâncias, - e em uma dinâmica renovável e imprevisível. Segundo o filósofo, a mistura gera algo previsível, enquanto a crioulização conduz a algo novo, algo que não é previsível de ser abrangido em sua totalidade, devido à sua dinâmica e mutabilidade.
O apagamento da narração da História contada pelos povos subjugados é uma prática empregada por todo opressor. Portanto, é imprescindível resgatar essas histórias, como uma espécie de arqueologia da História, compondo uma nova narração que inclua todos os aspectos e fatos.
Ao regressar da Europa para as Antilhas, Glissant lança a obra Sol da consciência: poética (1956). Em razão das diversas misturas e intercâmbios culturais, as Antilhas representam um microcosmo da futura situação global nas relações internacionais. Ao deixar Paris e regressar ao arquipélago, Glissant descobre que o ex migrante passa a observar o seu país com o olhar de um estranho, ou melhor, sob um novo olhar composto com os novos elementos adquiridos da cultura estrangeira, em uma espécie de “viagem ao contrário”. Esta viagem ao contrário é conhecida por todo migrante que regressa à pátria, após longo tempo.
A redescoberta de seu país e de suas origens proporcionou a Glissant a oportunidade de abordar reflexões centrais nas suas teorias em torno do que ele chama de “Antilhanidade” das relações entre diferentes culturas. Aqui ele trata da complexa situação identitária chamada de um “estrangeiro de dentro”; ou seja, surge o estranhamento ao regressar à pátria, e o migrante se torna, por determinado tempo, o estrangeiro em sua própria pátria.
Vale a pena lembrar que o surgimento do discurso anticolonialista iniciou-se com o movimento Negritude, em Paris, na década de 1930, fundado por Aimé Césaire, Léon-Gontron Damas e Leopold S. Senghor. O Negritude reivindica o direito à autodeterminação cultural, ou seja, proclama as origens africanas, seus valores, rejeitando a exploração de uma raça pela outra e a imposição cultural. Trata-se de uma forma de combate antirracista, anticolonialista e anti-imperialista. Em Paris, os integrantes deste movimento não queriam ser franceses de pele escura, mas assumir a sua identidade própria. Escreveram sobre suas vidas como negros, sobre a vida na África e no Caribe. E em 1948, Senghor lança a Antologia da Nova Poesia Negra em Francês, com o memorável prefácio de Jean-Paul Sartre intitulado Orfeu Negro.
Mais tarde, Glissant se afasta do movimento Negritude ao divergir com a ideia de que poderia existir uma diferenciação, uma essência negra e uma branca. Não há uma essência humana baseada na cor da pele. O ser humano é único, porém, possui várias tonalidades de pele e diversas culturas, costumes, idiomas e crenças. A ideia de uma diferença entre a essência negra e branca não resolvia de maneira adequada as questões da sociedade antilhana, e assim Glissant desenvolve o conceito de Antilhanidade, que surge como uma “oposição” ao conceito de Negritude. Ele entendia que a identidade do povo antilhano apresenta características que vão além das raízes africanas. O Antilhanidade seria composto a partir da ideia desenvolvida do que ele chama de identidade rizoma, quer dizer, a identidade múltipla, a identidade aberta às várias influências do mundo, colocando dessa forma, todos os povos em contato.
Enquanto o Negritude se limita à valorização e à sobreposição da cultura africana perante as outras, o Antilhanidade prega a adição de elementos externos, resultando na diversificação das culturas e no seu nivelamento perante as culturas, na valorização das características elementares de cada uma.
No que se refere à teoria do rizoma identitário glissantino, para o filósofo a identidade possui várias raízes, diversas origens, não se limitando a uma única fonte, em contrapartida com a “identidade raiz única” veiculada pelos povos europeus. Os conceitos filosóficos de "raiz única" e "rizoma" foram desenvolvidos originalmente pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari. Partindo deste princípio, Glissant escreve: “Porque de fato é disso
que se trata: de uma concepção sublime e mortal que os povos da Europa e as culturas ocidentais veicularam no mundo; ou seja, toda identidade é uma identidade de raiz única e exclui o outro. Essa visão da identidade se opõe à noção hoje “real”, nas culturas compósitas, da identidade como fator e como resultado de uma crioulização, ou seja, da identidade como rizoma, da identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro de outras raízes. (...) quando falamos de identidade raiz indo ao encontro de outras identidades, temos a impressão de uma ameaça de diluição: funcionamos sempre segundo o antigo modelo e, então, repito a mim mesmo, e, se eu não for mais eu mesmo, perco-me de mim! Ora, no atual panorama do mundo uma questão importante se apresenta: como ser si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?”
Por fim, as teorias glissantinas nos levam a concluir que o mundo precisa de mais crioulização, ou seja, de mais respeito à diversidade e de equidade entre as culturas. Mas para alcançar-se o estado de Todo-Mundo, faz-se necessário, primeiramente, redescobrir as culturas apagadas, as culturas violentamente dirimidas da história. É preciso, ressignificar a história, refutando assim qualquer forma de hierarquização cultural.
Viviane de Santana Paulo, poeta, romancista, tradutora e ensaísta. Estudou filologia germânica e românica na universidade de Bonn. É autora dos livros, lebendiges wensen namens gedicht – vom satelliten aus gesehen / ser vivo chamado poema – visto do satélite (coletânea de poesia bilíngue – Engelsdorf Verlag, Leipzig, 2023); Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Foi membro da equipe editorial da ila-latina, revista de cunho sócio-político com sede em Bonn (Informationsstelle Lateinamerika e.V.). Seus textos foram publicados em revistas e antologias na Europa e América Latina. Traduziu poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Ron Winkler, Josef Kafka, Sarah Kirch, Paul Celan, Gottfried Benn.
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